A República dos Sonhos de Nélida Piñon é alimentada pelo sexo.

Marcelo Scrideli
3 min readNov 4, 2020

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Eulália começou a morrer na terça-feira” é a primeira frase da longa narrativa do romance familiar de Nélida Piñon: uma saga que se confunde com a história de sua própria família, de origem galega, as terras espanholas que fazem fronteira com Portugal na península ibérica, uma saga que se origina da diáspora europeia do final do século XIX e início do século XX, quando a camada populacional menos favorecida da Europa se aventurou em cruzar o atlântico, em navios com condições insalubres por vários dias, com o intuito de “fazer a América”, meus bisavós estão entre eles também.

Madruga é o patriarca que embarca em um navio inglês com muita vontade e nenhum dinheiro, leva apenas sua juventude de 13 anos e deixa apenas sua ausência na Galícia de seu amado avô Xan, do pai Ceferino e da mãe Urcesina e nem ao menos um bilhete. No navio divide sua solidão com um garoto que conta com a mesma idade, mas diferente do obstinado e duro Madruga, Venâncio chora ao ver sua terra natal se distanciar, ele leva apenas sua capacidade de sonhar e seus mistérios para a terra brasilis, esse comportamento dos garotos, que irão permanecer ligados até envelhecer no Rio de Janeiro, é sintomático para toda a narrativa.

“ — Você jamais entenderá meu desprezo pelo ouro, Madruga. Não se esqueça de que pertenço à raça dos sonhadores. E, se escolhi a América, é porque aqui poderia conquistar o angustiante sortilégio de esboçar as linhas do meu mapa pessoal. Mesmo sabendo que as traças terminam por devorar as linhas do sonho, nada restando desta cartografia imaginária. Nem mesmo a memória.” pg. 43; ed. 1997.

Eulália, a esposa galega que Madruga foi buscar na sua vila natal de Sobreira, filha do nobre decadente Dom Miguel, continua no seu processo de morte enquanto a saga familiar é contada, Eulália que tem um carinho extremo por Venâncio (ou algo mais?), Eulália que é acompanhada durante toda narrativa por Odete, sua empregada afro-americana que nutre por ela uma veneração que beira dependência sexual, aliás TUDO é sexo nessa obra, de maneira real, de maneira figurada, de maneira histórica, de todas as maneiras, o sexo permeia a narrativa.

Nélida não entrega nada de graça: há uma aura de mistério até o final do texto, os filhos e netos chegam, as relações de acerbam, Madruga se segura no seu eldorado, Eulália se alimenta de sua fé cega, Venâncio se alinha a seus sonhos, criando uma teia particular, podendo ficar preso na sua própria criação, Odete se sustenta em Eulália, que continua morrendo.

Uma obra absolutamente genial, na sua forma não-linear, no seu conteúdo familiar que perpassa a história do Brasil e da Espanha, na sua narrativa esplendorosa e instigante, e até em seus não ditos, nos seus silêncios, nos seus vazios, nos seus mistérios, nos elegantes espaços deixados para nós, meros leitores nas mãos de uma habilidosa escritora, que, caso fosse espanhola, como seu avô, com certeza teria em sua estante uma medalha da Academia do Nobel de literatura.

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