Clarice Lispector: Uma artista de uma peça de teatro absurdo escrita por um Deus absurdo

Marcelo Scrideli
5 min readDec 10, 2020

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Clarice era Chaya quando nasceu a exatamente cem anos atrás em Tchechelnik, um pequeno povoado na Ucrânia onde a família Lispector, em fuga do genocídio que assolava a região, parou para Mania (a mãe) dar à luz a criança que iria se tornar uma das maiores escritoras do Brasil e do mundo. Chaya significa vida em hebraico, e vida era algo difícil no contexto que os Lispector estavam inseridos, Mania tinha sífilis e uma criança nascer de uma mãe sifilítica em 1920 era algo muito raro, fatos imponderáveis como esse iriam marcar a vida dessa auto declarada pernambucana que detestava ser chamada de ucraniana, dizia, em sua defesa, que nunca pisou o solo daquele país, nesse ponto, muito provavelmente, tinha razão.

Clarice, apesar de ter oportunidade de voltar a rever o local de seu nascimento, afinal o marido, então funcionário da embaixada brasileira, trabalhou em Varsóvia, na Polônia, próximo da Ucrânia, parece que fez opção por não retornar, como ela mesmo lembra:

“Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo. Mas lembro-me de uma noite, na Polônia, na casa de um dos secretários da Embaixada, em que fui sozinha ao terraço: uma grande floresta negra apontava-me emocionalmente o caminho da Ucrânia. Senti o apelo. A Rússia me tinha também. Mas eu pertenço ao Brasil.”

E nessa corrida para fugir, para um lugar onde pretendiam retomar a vida (EUA ou Brasil eram as opções), as dificuldades eram muitas: Pinkhas (o pai) foi vítima de tifo, a mãe extremamente fragilizada em decorrência da sífilis, as posses que tinham se esgotando, a fome batendo as portas, a responsabilidade pela família, durante um período, ficou sob os ombros de Leah (depois Elisa, no Brasil), primeira filha do casal, então com nove anos, a família tinha ainda uma outra filha, Tânia, nascida entre Elisa e Clarice.

A família perambulou por Maceió, Recife e Rio de Janeiro, mas a infância de Clarice ficou pra sempre marcada em Recife, ela levou isso pra vida e literatura. Ela nunca foi panfletária, mas os seus textos refletem situações sociais e a crítica é inerente a suas narrativas, a mais contundente delas está no seu último romance escrito: A Hora da Estrela (Um Sopro de Vida saiu postumamente, mas foi escrito antes). Mas parece que não foi suficiente pra ela, em relatos diversos ela fala sobre isso, a exemplo:

“Em Recife, onde morei até doze anos de idade, havia muitas vezes nas ruas um aglomerado de pessoas diante das quais alguém discursava ardorosamente sobre a tragédia social. E lembro-me de como eu vibrava e de como eu me prometia que um dia esta seria a minha tarefa: a de defender o direito dos outros. No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima. É pouco, é muito pouco.” (nota: sua graduação foi em Direito)

Ou então nesse passagem:

“Não muda nada. Escrevo sem esperança de que alguma coisa que eu escreva possa mudar o que quer que seja. Não muda nada.”

Mas mudou sobremaneira, ela talvez não vislumbrasse que seus textos seriam tão lidos, citados, comentados, circulasse no mundo virtual da tecnologia da informação quando ela completasse seu centenário.

Mas era extremamente ousada, foi a mulher que desafiou a esfinge: esteve certa vez no Egito e foi visitar as pirâmides, no livro Um Sopro de Vida, lançado postumamente, ela faz referência ao seu encontro com a famosa esfinge, pobre esfinge hehe…

“ — O que é a natureza senão o mistério que tudo engloba? Cada coisa tem o seu lugar. Que o digam as pirâmides do Egito. No alto de tanta incompreensão, no topo da pirâmide, quantos séculos, eu te contemplo, oh ignorância. E eu sei qual é o segredo da esfinge. Ela não me devorou porque respondi certo à sua pergunta. Mas eu sou um enigma para a esfinge e no entanto não a devorei. Decifra-me, disse eu à esfinge. E esta ficou muda. As pirâmides são eternas. Vão ser sempre restauradas. A alma humana é coisa? É eterna? Entre as marteladas eu ouço o silêncio.”

Tem outro trecho de “Um Sopro de Vida”, escrito entre 1974 e 1977, que talvez sintetize Clarice, é emblemático porque fala do absurdo da vida, talvez ela estivesse olhando para trás e pensasse o quão absurda tinha sido sua vida e isso lhe desse o direito de pensar em eternidade, e de certa maneira ela tinha razão:

“Esta noite tive um sonho dentro de um sonho. Sonhei que estava calmamente assistindo artistas trabalharem no palco. E por uma porta que não era bem fechada entraram homens com metralhadoras e mataram todos os artistas. Comecei a chorar: não queria que eles estivessem mortos. Então os artistas se levantaram do chão e me disseram: nós não estamos mortos na vida real, só como artistas, fazia parte do show esse morticínio. Então sonhei um sonho tão bom: sonhei assim: na vida nós somos artistas de uma peça de teatro absurdo escrita por um Deus absurdo. Nós somos todos os participantes desse teatro: na verdade nunca morreremos quando acontece a morte. Só morremos como artistas. Isso seria a eternidade?”

#PraSempreClariceLispector

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