Deixa Comigo — Mario Levrero

Marcelo Scrideli
3 min readSep 30, 2020

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Segundo Joca Terron, o tradutor do livro, podemos dividir os escritores em dois compartimentos, no primeiro estão aqueles que você vai ler todas as obras, porque são textos excelentes e depois de ler um deles não vai sossegar enquanto não ler todos, e no segundo, aqueles que você somente lerá um livro, porque só escreveu um título (ou um único definitivo): o uruguaio Mario Levrero está no primeiro compartimento, nas palavras de Terron:

“Polígrafo sem freios, nascido em Montevidéu em 1940 e morto em 2004 na mesma cidade, ele publicou de tudo: manuais de parapsicologia, fotografias, cartuns, palavras cruzadas, histórias em quadrinhos, quebra-cabeças e — pasmem — até mesmo contos e romances.”

Fã inveterado de romances policiais, Levrero eis que nos brinda com sua versão de um romance policial. É claro que o resultado não se encaixa exatamente na estética do gênero, ele desconstrói totalmente os truques narrativos desse tipo de obra: há um mistério na novela — sim, é uma narrativa curta — qual seja descobrir quem escreveu um manuscrito, com potencial de se tornar o “romance luminoso” da América Latina, que foi enviado a uma editora uruguaia sem dados para contato. O escritor narrador (alter ego de Levrero, obviamente) dispõe para encontrar o sujeito duas informações: o local onde foi postado o envelope com o manuscrito (interior do Uruguai) e o nome do escritor (possivelmente um pseudônimo).

Apesar do pressuposto da narrativa ser o tal manuscrito e seu misterioso escritor, em nenhum momento ele se pendura no fato para construir sua narrativa, o que importa em sua viagem para uma pequena cidade interiorana é a trajetória, é o lugar, são as andanças e encontros pela cidade.

A princípio você pode achar que o nosso escritor narrador está focado e já traçou uma estratégia, mas depois de conhecer a primeira mulher na trama ele perde totalmente o foco, Levrero parece se apaixonar por quase todas as mulheres que encontra pelo caminho.

Incrível sua capacidade narrativa de criar um local, geograficamente falando, tão palpável, que entra na cabeça do leitor, ele anda com o narrador pelas ruas na cidadezinha como se a conhecesse de outras viagens, sabe aquela sensação de nostalgia quando você retorna a um local onde esteve antes, é exatamente essa a sensação.

Uma das coisas incríveis na maneira como o Levrero cria suas narrativas é o fato de inserir passagens totalmente aleatórias, o que torna o texto muito mais saboroso, a exemplo:

“Existe algo terrivelmente culposo no fato mesmo de ser uruguaio, e portanto nos é impossível dizer não clara, franca e definitivamente. É preciso agregar um enorme palavrório para justificar esse não, sempre e quando chegamos a pronúnciá-lo; com frequência nos enredamos em transações complicadas, viciadas de irrealidade, que costuma levar a desastres monumentais.”

Ou então, além de aleatórias, muito engraçadas, como abaixo:

“Não, não sabia como ele era, e de repente tampouco queria saber. Eu também podia matá-lo. E provavelmente ficaria satisfeito em fazê-lo. Baixei a cabeça, e me interessou muitíssimo uma manchinha branca sobre meu sapato direito, certamente uma salpicadura de pasta de dentes. Seria fabricada a partir do que, tão branca e pegajosa? Em casa eu tinha um dicionário técnico quando chegasse em Montevidéu procuraria “pasta de dentes”. Ou melhor “dentifrício”. Sem dúvida devia estar como “dentifrício”. Era um bom dicionário, trazia informações sobre uma infinidade de coisas.”

Como “bônus”’ inclui ao final uma excelente entrevista imaginária de Levrero feita por ele mesmo.

Enfim, ótima companhia de leitura, caso não tenha lido, pode iniciar com esse “Deixa Comigo” e depois se aventurar pelo inclassificável “Romance Luminoso”, as duas únicas traduções para o português dos textos do uruguaio.

Editora: Rocco (coleção Otra Língua)

157 páginas.

Tradução: Joca Reiners Terron

Edição 2013.

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