País sem Chapéu — Dany Laferrière: uma viagem sensorial ao Haiti

Marcelo Scrideli
4 min readSep 22, 2020

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Li recentemente A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao do mezzo dominicano mezzo norte-americano Junot Díaz onde há uma entidade maléfica intitulada Fukú que leva a maldição para a família protagonista da narrativa, entidade essa que faz parte da mitologia das terras dominicanas, mas acontece que a República Dominicana divide sua porção de terra, localizada em uma ilha, com o Haiti e depois que eu terminei de ler País sem Chapéu do autointitulado "cidadão americano" Dany Leferrìere fiquei com a sensação que o território inteiro desse pequeno país caribenho está sob a influência do Fukú vizinho. Além de que, historicamente, há uma "treta" entre os países, logo no primeiro parágrafo, Dany sentencia: "(República Dominicana) a inimiga ancestral".

Mas fato é que a escrita de Leferrìere é iluminada, clara e brilhante como o mar do Caribe, não há espaço para excessos na sua narrativa, ela é direta e extremamente poética: cores, cheiros, diálogos incríveis e muitas outras sensações você consegue absorver. É um olhar de alguém que esteve (forçosamente) fora por 20 anos.

"Antigamente, era mais fácil distinguir a origem social das pessoas desta cidade (Porto Príncipe). Só pelo nariz. [...] os camponeses mantinham ainda colado à pele esse odor vegetal. Pareciam árvores que andam. eu conhecia uma jovem camponesa que cheirava a canela.”

País sem Chapéu, curioso nome que o leitor descobre logo no início, é uma narrativa cheia de dualidades: a começar pelo estilo narrativo, a ficha catalográfica diz ficção, mas uma breve pesquisa sobre o autor se descobre que é uma experiência pessoal (ele mesmo diz que é "autobiografia americana"), ela se desenvolve, também, intercalando capítulos intitulados como "País Real" e "País Sonhado", dia e noite, vivos e mortos. O Haiti é a "Terra dos mortos", não há diferença entre os "estados" físicos, zumbis povoavam a ilha na cultura de matriz africana do vudu.

"[...] o senhor não vê que todas as outras nações estão no país? (ele se refere aos soldados das Nações Unidas que ocupam as ruas de Porto Príncipe.) O que o senhor acha que eles estão fazendo? Pesquisas, meu amigo. Eles Vêm aqui para estudar quanto tempo o ser humano pode ficar sem comer nem beber.”

Os diálogos incríveis é outro ponto positivo da narrativa, eles deixam o leitor mais próximo da essência do povo haitiano.

"-- Armstrong chegou à Lua certo de que era o primeiro homem a pisar naquele solo. Ele começava a fazer seus legendários saltos de canguru quando ouviu uma voz atrás dele: "Ei! amigo, você tem um cigarro? Faz três dias que não fumo. Você sabe o que isso quer dizer para um fumante?". Armstrong virou-se e viu um haitiano alegre sentado atrás dele. Mas isto nunca foi mostrado ao grande público."

O livro termina com um posfácio lindíssimo da tradutora, Heloísa Moreira, que sintetiza essa obra, que não é perfeito, tem várias pontas soltas, mas é absolutamente adorável.

"O livro lida com elementos que revelam a complexidade de do país e, no entanto, percebemos em vários pontos uma realidade mais próxima e familiar do que talvez pudéssemos imaginar. Além disso, ele traz um olhar da América colonial nada diferente do que estamos acostumados a lançar sobre nós. A descoberta de um país que não está tão longe da nossa realidade quanto imaginávamos que chega até nos por meio de uma literatura com a qual não existe uma relação dominante já viciada, que não alimenta nossa posição de admiradores e seguidores - pode ajudar-nos a rever a imagem que temos de nós mesmos. Quem sabe, ler a literatura haitiana também traga elementos novos que nos permitam (re)pensar nossa relação com a língua portuguesa e com nossa própria sociedade."

Esse trecho me lembrou da canção do Caetano, que chama a atenção para o mesmo ponto, é preciso repensar as relações, o que é ser americano? O que é ser latino-americano?

“Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui”

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