Quando a fictícia Macondo encontra a Jardinópolis da Alta Mogiana Paulista

Marcelo Scrideli
5 min readSep 8, 2020

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Na Câmara Municipal de Jardinópolis, cidade do interior paulista, há um painel com uma declaração de Cândido Portinari, o renomado artista plástico, onde se lê:

Jardinópolis, onde morava minha avó materna e vários tios e tias e muitos primos. Para mim e meus irmãos, Jardinópolis era a Meca, lá havia de tudo, placas nas ruas e números de casas, dois cinemas e muitos negócios […] meus tios eram donos de empórios e confeitarias: não tinham automóveis nem caminhões, eles possuíam muitos animais […] davam filmes durante a semana. Os salões eram enormes, num deles tinham umas pinturas, sabia de cor o nome de todos aqueles artistas. Saia com o primo Umberto ou de carrinho ou a cavalo, íamos a fazendas e chácaras com plantações de mangas para exportar. Era tão bom lá. Quando tinha que voltar, era tão triste tudo, e tão quieto e silencioso que dava medo.”

Essa declaração foi dada por Portinari em Paris, em 1957, se reportava a lembranças da sua meninice, quando realizava o trânsito entre sua natal Brodowski e os poucos quilômetros que separavam da minha Jardinópolis.

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Vamos deixar Portinari um pouco de lado agora e vamos falar de Gabriel García Márquez, também um renomado artista, mas esse das letras: dias atrás finalizei a leitura de uma das obras mais significativas da Literatura Latino Americana, Cem Anos de Solidão, que não é apenas uma saga familiar, sobre os Buendía, não é apenas uma saga territorial, sobre Macondo, local ficcional onde se desenvolve a narrativa. A partir do momento que José Arcadio Buendía resolve se fixar naquela porção de terra que se tornou Macondo os Buendía se conectaram umbilicalmente com Macondo: a história do lugar e da família se misturam, e se confundem de maneira indissociável.

Muitas dizem que a história narrada por Garcia Márquez é uma analogia da formação social latino americana, e minha expectativa era essa também antes do início da leitura da obra, mas depois de finalizar essa primeira leitura (digo primeira pois Cem Anos de Solidão é, especialmente, aquele tipo de obra que não se esgota na primeira leitura) vou ter que concordar com o próprio autor, que disse certa vez que era apenas uma narrativa sobre lembranças da sua cidade natal, Aracataca, e o realismo mágico — um recurso narrativo usado pelo autor e, também por outros autores, principalmente latino americanos — eram os fatos vistos pelos olhos de uma criança imaginativa, mas é claro que tem muitos elementos da formação social da América Latina na narrativa, como tem na história de várias outras localidades do continente que se reproduziu e, ainda hoje se reproduz, os processos oriundos de colonização exploratório que marcou nosso continente.

Desde que comecei a ter aulas de sociologia e antropologia passei a ler os livros de ficção com outros olhos, comecei a perceber que certos escritores são verdadeiros etnógrafos ficcionais, isto é, retratam com perfeição os locais onde se desenvolvem as tramas dos seus livros, o mexicano Juan Rulfo, que, declaradamente, inspirou Garcia Márquez e seu Cem Anos de Solidão, talvez seja o maior exemplo disso que estou falando.

Nesse contexto, a experiência da leitura e as declarações de Garcia Márquez me despertaram sentimentos em relação às minhas origens e, especificamente ao meu local de origem, a minha Jardinópolis, que outrora habitou os pensamentos do menino Portinari de maneira tão indissociável, com pouco mais de cem anos, passou pelo ciclo do café, da manga e da cana-de-açúcar, viajou no trem da história da Companhia Ferroviária Mogiana — que chegou a cidade quando essa tinha apenas dois anos de fundação — teve seus dias de glória quando recebia a visita de Candinho, e depois retrocedeu, perdeu seu encanto, perdeu seus dormentes, perdeu suas locomotivas, perdeu seus vagões, ficou sem trilho, enfim, perdeu o trem da história.

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Macondo, do mesmo modo, esteve por muito tempo sob o controle dos Buendía, mas com o passar do tempo, o lugar que parecia uma comunidade anárquica, observou a chegada da modernidade e a modernidade trás o capitalismo, a cidade se expande, com a chegada da ferrovia chega também os gringos, para explorar o ciclo da banana, a partir de então tudo meio que sai do controle, depois da exploração vem a decadência. Em um dos momentos mais marcantes do livro, García Márquez trás para a narrativa de Cem Anos de Solidão o episódio que aconteceu na sua natal Aracataca e ficou conhecido como o massacre das bananeiras, quando os trabalhadores da multinacional United Fruit Company, em greve por melhores salários, direitos sociais e condições de trabalho, foram exterminadas por militares e os corpos metralhados foram transportados nos vagões do trem, deixando um rastro de sangue, e depois jogados no mar:

— Cornos! — gritou. — Podem levar de presente o minuto que falta. Ao fim do seu grito aconteceu uma coisa que não lhe produziu espanto, mas uma espécie de alucinação. O capitão deu a ordem de fogo e quatorze ninhos de metralhadoras responderam imediatamente. Mas tudo parecia uma farsa. Era como se as metralhadoras estivessem carregadas com fogos artifício, porque se escutava o seu resfolegante matraquear se viam as suas cusparadas incandescentes, mas não se percebia a mais leve reação, nem uma voz, nem sequer um suspiro entre a multidão compacta que parecia petrificada por uma invulnerabilidade instantânea. De repente, de um lado da estação, um grito de morte quebrou o encantamento: “Aaaai, minha mãe.

As lembranças da infância, que gerou o Cem Anos de Solidão de Garcia Marquez, parece que também foram importantes para Portinari, os trabalhadores rurais, por exemplo, foram retratados por ele com frequência, principalmente os campos de café e cana-de-açúcar, mas a mais expressiva e impressionante tela da carreira dele, na minha opinião, é a figura dos retirantes: os desprovidos de uma parcela de terra, de uma parcela de pão, a fome é um fato, tive a oportunidade de estar de frente com a tela, que está exposta no MASP, em São Paulo, é uma obra de tamanho grande, divide espaço com obras de artistas como Van Gogh, Cézanne, Renoir, Monet e Picasso, mas quando você se depara com a tela de Portinari o impacto é muito grande, a força dessa obra é impressionante.

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Muitas vezes a verdade está mais presente na ficção do que nos livros de história, ou nem de palavras se faz necessário: as telas de Portinari são retratos que expõe a realidade de uma maneira que nenhum livro de história consegue reproduzir, só a arte consegue reproduzir a dor.

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