Sou apenas um rapaz Latino-Americano que se emociona lendo um livro…

Marcelo Scrideli
3 min readNov 29, 2020

--

Sábado de manhã, dia já apresentando a quentura de final de ano aqui na Alta Mogiana Paulista, uma cadeira simples, mas confortável, na varanda, vou iniciar a leitura de uma espécie de posfácio que o Galeano escreveu sete anos após o lançamento de As Veias Abertas da América Latina, mas antes pego o celular para dar uma olhada em alguns destaques de notícias do dia, duas chamam atenção: a primeira sobre as declarações de Neil Gaiman em uma live, onde diz que os brasileiros são os únicos a questionar a diversidade presente em Sandman, a segunda sobre um “cidadão de bem” que entrou na justiça para requerer a “limpeza” de um imenso painel artístico na lateral de um prédio em BH que tem como temática a cultura negra, o tal cidadão branco foi a única voz dissonante quando o condomínio do prédio aprovou a realização da obra.

Pois bem, vou apenas contar minha experiência deste sábado, sobre seu conteúdo é preciso ler o livro. Depois de passar pela descrição didática dos processos exploratórios na América Latina da narrativa, desde o inicio dos tempos, que chamam de “descobertas”, até 1970, quando o livro foi lançado, quando comecei a ler o posfácio, Galeano dizendo que a principal reação ao livro veio das ruas e não da crítica especializada, tive uma reação catártica, comecei a chorar copiosamente, tive que parar, não conseguia identificar as palavras no leitor digital, tive que lavar o rosto algumas vezes, tomar uma água e esperar a emoção se dissipar para retomar a leitura. Abaixo segue o trecho inicial que começou a me tirar do conforto:

Este livro tinha sido escrito para uma conversa com as pessoas. Um autor não especializado se dirigia a um público não especializado, com a intenção de divulgar certos fatos que a história oficial, história contada pelos vencedores, esconde ou mente.

A resposta mais estimulante não veio das páginas literárias dos jornais, mas de alguns episódios reais ocorridos na rua. Por exemplo, a moça que estava lendo este livro para sua companheira de banco e acabou levantando-se e lendo em voz alta para todos os passageiros enquanto o ônibus atravessava as ruas de Bogotá; ou a mulher que fugiu de Santiago do Chile, nos dias da matança, com este livro no meio das fraldas do bebê; ou o estudante que durante uma semana recorreu as livrarias da rua Corrientes, em Buenos Aires, e o leu aos pedacinhos, de livraria em livraria, porque não tinha dinheiro para comprá-lo.

Como ele expõe logo em seguida, não era um especialista, mas queria apenas responder algumas perguntas:

A América Latina é uma região do mundo condenada à humilhação e à pobreza? Condenada por quem? Culpa de Deus, culpa da natureza? Um clima opressivo, as raças inferiores? A religião, os costumes? Não será a desgraça um produto da história, feita pelos homens e que pelos homens, portanto, pode ser desfeita?

Mais umas palavras a frente está o trecho que provocou o choro compulsivo:

Estuda-se história como se visita um museu; e essa coleção de múmias é uma fraude. Mentem-nos o passado como nos mentem o presente: mascaram a realidade. Obriga-se o oprimido a ter como sua uma memória fabricada pelo opressor, alienada, dissecada, estéril. Assim ele haverá de resignar-se a viver uma vida que não é a sua como se fosse a única possível.”.

Isso é tão forte que as lágrimas chegam novamente enquanto escreve esse texto.

Sei que o texto tem questionamentos, o próprio Galeano em uma das suas últimas entrevista disse que a “prosa da esquerda tradicional é chatíssima”, suponho eu, decepcionado com a esquerda que chegou no poder e se aliou ao opressor.

Mas leia o livro e tire suas próprias conclusões, afinal é um lado que não está nos livros de história.

--

--